O Evangelho Ofende Antes de Curar
First Reading: Romanos 1,16-25
Responsorial Psalm: Sl. 18(19),2-5
Gospel: Lucas 11,37-41
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Às vezes a verdade não conforta de início, ela corta. Pensa bem… Quando um médico precisa cuidar de uma ferida infeccionada, ele não começa com perfume, mas limpando e apertando onde dói. A dor vem antes da cura. Quando alguém fala a verdade sobre você, quase nunca soa doce. Às vezes você fica bravo antes de reconhecer que a pessoa tinha razão. Assim é a Palavra de Deus: primeiro ela incomoda, depois purifica. Alguns até param de ir à igreja quando a homilia toca o jeito de vida deles, esquecendo que o Evangelho não foi feito para divertir, mas para transformar. Do mesmo modo que o sal arde numa ferida antes de conservar, a verdade de Deus muitas vezes machuca antes de ajudar. Por isso muitos preferem mensagens suaves, que acariciam a consciência em vez de converter o coração. Mas se o Evangelho não incomoda o seu conforto, provavelmente não está mudando o seu coração.
Na primeira leitura (Romanos 1,16-25), São Paulo declara com coragem: “Eu não me envergonho do Evangelho; ele é força de Deus para a salvação.” Ele escreveu essa carta aos cristãos de Roma por volta do ano 57 d.C., numa época em que ter fé em Cristo era motivo de zombaria e até de risco. O Império Romano era um grande caldeirão de religiões e filosofias; o povo adorava deuses da riqueza, do sexo e do prazer. Paulo, escrevendo de Corinto, queria fortalecer aquela comunidade jovem que vivia confusa e perseguida. Sua mensagem era clara: o Evangelho não é enfeite para a religião, é dinamite para a alma. A palavra grega para “força” usada aqui é δύναμις (dýnamis), que significa energia explosiva, a mesma raiz da palavra “dinamite”. Em outras palavras, o Evangelho explode as mentiras antes de reconstruir a fé. Paulo sabia que o Evangelho precisa primeiro ofender quem vive confortável no pecado, porque a verdade revela as mentiras que a pessoa construiu. Quando ele diz que “a ira de Deus se manifesta contra toda impiedade”, ele não fala de um Deus zangado, mas de uma realidade onde as escolhas humanas trazem a própria destruição. O povo de Roma, mesmo culto e inteligente, trocou Deus por ídolos criados por eles mesmos. O problema não era ignorância, era orgulho. Sabiam o que era certo, mas escolheram o que dava prazer. Não é o mesmo que vemos hoje, quando as pessoas conhecem a verdade mas preferem o que agrada?
O Salmo Responsorial (Salmo 19) traz um tom mais calmo, mostrando a beleza da revelação de Deus. Ele diz: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra de suas mãos.” Antes da palavra escrita, a própria criação era a primeira Bíblia, pregando silenciosamente o Criador. A palavra hebraica para “glória” é כָּבוֹד (kābōd), que significa peso ou importância, algo cheio de valor. A glória de Deus, então, não é decoração no céu, mas Sua presença forte e pesada que sustenta tudo. O salmista diz que “um dia fala ao outro dia”, ou seja, a criação não para de testemunhar a verdade. Mesmo assim, como diz Paulo, “conheceram a Deus, mas não O glorificaram.” A mesma luz que brilha nos céus também brilha em cada consciência, mas muitos fecham os olhos. O Evangelho não ofende porque é cruel, mas porque confronta a cegueira que escolhemos. Deus fala pela natureza, pela consciência, pela Escritura e pela Igreja, mas muitas vezes preferimos o silêncio à luz.
No Evangelho (Lucas 11,37-41), Jesus aceita um convite para jantar na casa de um fariseu, mas de propósito não faz a lavagem ritual antes da refeição. Esse gesto causou escândalo. Na cultura judaica, especialmente entre os fariseus, lavar-se antes de comer não era questão de higiene, mas de pureza religiosa. Lucas, escrevendo por volta dos anos 80-90 d.C. para cristãos de língua grega, queria mostrar que Jesus não estava contra a Lei, mas contra o uso errado dela. Os fariseus usavam a pureza exterior para julgar os outros, escondendo a sujeira interior. Então Jesus olha para o homem e diz: “Vocês, fariseus, limpam o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de ganância e maldade.” A palavra grega que Jesus usa para “limpar” é καθαρίζω (katharízō), que quer dizer purificar, tornar livre da impureza. Ele usa de modo irônico, porque eles eram obcecados com o katharízō exterior, enquanto a alma estava suja. Mais uma vez, o Evangelho ofende antes de curar. Jesus poderia ter ficado calado, mas amou tanto que preferiu dizer a verdade. Não foi para humilhar, mas para salvar. Assim como o médico precisa abrir a ferida para tirar o pus, Cristo teve que expor a corrupção interior para oferecer cura. Ele termina com um ensinamento simples: “Dai esmola do que está dentro, e tudo ficará puro para vocês.” Ele quer dizer: deixem que a caridade venha de um coração sincero, não de aparência. Essa é a verdadeira limpeza interior.
Hoje também, muita gente quer um Evangelho que acalma, mas não um que corrige. Queremos o Jesus que multiplica pães, mas não o que multiplica a verdade. Como os romanos, vivemos numa cultura que adora o prazer e foge da correção. Como o fariseu, podemos parecer religiosos, mas não deixamos a Palavra nos lavar por dentro. Às vezes, as pessoas deixam a Igreja não por perseguição, mas porque a verdade incomodou o conforto delas. Mesmo assim, o mesmo Evangelho que fere o orgulho cura a alma. Ele ofende o pecado, não o pecador. Fere a hipocrisia para restaurar a sinceridade. Quando Paulo disse que não se envergonhava do Evangelho, ele sabia que podia perder amigos, liberdade e até a vida, mas preferiu a verdade ao aplauso. Então, da próxima vez que a Palavra de Deus te desafiar, não desliga. Não foge do pregador. Não te esconde atrás de “ninguém é perfeito.” Deixa a Palavra fazer a cirurgia. Lembra: até o sal dói antes de conservar. O Evangelho corta antes de curar. A pergunta é: você vai deixar que ele te ofenda o suficiente para te curar?
“Oxalá ouvísseis hoje a sua voz: não fecheis os vossos corações!” (Salmo 94,7)
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Shalom!
© Fr. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brazil
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