Quando o diabo parece organizado e a Igreja parece fraca
First Reading: Joel 1,13-15; 2,1-2
Responsorial Psalm: Sl. 9A(9),2-3.6.16.8-9
Gospel: Lucas 11,15-26
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Se a gente olhar bem o mundo de hoje, às vezes parece que o mal funciona melhor do que o bem. Os corruptos se juntam e se defendem uns aos outros, enquanto as pessoas honestas vivem divididas e acabam lutando sozinhas. Quem faz o errado parece mais unido; eles se protegem, se apoiam e têm coragem até pra defender o mal. Mas entre os que dizem amar a Deus, o que mais se vê é competição, fofoca, inveja e falta de foco. As mesmas pessoas que deveriam rezar juntas vivem se derrubando. Às vezes, até dentro da Igreja, quem serve no altar briga mais do que reza. Famílias se dividem, pastorais se desorganizam, e comunidades que deveriam mostrar a luz de Cristo acabam brigando por cargos e reconhecimento. Quando a gente olha como o mal parece organizado, e como tantos que se chamam filhos da luz estão desorganizados, dá vontade de perguntar: será que o diabo é mais comprometido com o mal do que os cristãos são com a santidade?
Essa era exatamente a situação por trás da primeira leitura, do profeta Joel (Joel 1,13-15; 2,1-2). O povo de Judá tinha se tornado espiritualmente preguiçoso e moralmente relaxado. O Livro de Joel foi escrito mais ou menos no século V antes de Cristo, provavelmente depois do exílio, num tempo de uma praga terrível de gafanhotos e de seca que destruiu tudo. O profeta Joel usou essa tragédia nacional como um espelho espiritual pra mostrar como o pecado tinha devorado o coração do povo, do mesmo jeito que os gafanhotos devoravam as plantações. Ele via como o mal parecia ter um exército forte, unido e disciplinado, enquanto o povo de Deus tinha perdido o fogo do arrependimento e o respeito pelas coisas sagradas. Ele gritou: “Tocai a trombeta em Sião! Tocai o alarme no meu santo monte!” O “dia do Senhor” estava próximo, um dia em que Deus mostraria a sua justiça. Joel descreveu os gafanhotos como um exército: “um povo grande e poderoso, como nunca houve antes.” Em hebraico, a palavra usada pra “exército” é chayil (חַיִל), que significa não só exército, mas também força, poder e eficiência. Joel não estava só falando de insetos; ele estava descrevendo como o pecado e o mal agem: organizados, determinados e persistentes. O mal estava unido, mas o povo de Deus dormia. Por isso Joel chamou todo mundo, especialmente os sacerdotes, pra “se vestir de pano de saco e lamentar” (Jl 1,13). O objetivo do livro era acordar um povo dividido e distraído, lembrando que, quando o mal parece unido, não é porque Deus enfraqueceu, mas porque o seu povo parou de caminhar junto na justiça.
O Salmo Responsorial (Salmo 9) responde a esse grito com confiança: “O Senhor julgará o mundo com justiça.” O salmista, que se acredita ser Davi, canta a partir da experiência de quem já viu o mal parecer forte por um tempo. Ele viu nações se levantarem e caírem, inimigos se gabarem e os justos sofrerem. Mesmo assim, ele declara que Deus “reina para sempre” e “julga o mundo com retidão.” A palavra raiz usada aqui pra “julgar” é shaphat (שָׁפַט), que não quer dizer só condenar, mas também colocar as coisas em ordem e restaurar o equilíbrio. Então, enquanto o mundo parece confuso, Deus está colocando tudo no lugar certo. O mal pode parecer organizado, mas é passageiro, porque é construído sobre mentiras. A justiça de Deus é mais lenta, mas é segura. Esse salmo lembra que o Senhor nunca fica impressionado com a força ou com a união do mal. Ele deixa que tudo siga até o momento certo, quando o seu julgamento vai corrigir tudo. Assim como o exército de gafanhotos em Joel acabou destruído, todo sistema do mal vai encontrar o seu fim diante da justiça de Deus.
No Evangelho (Lucas 11,15-26), aparece a mesma tensão: o mal parece organizado, enquanto o bem é mal interpretado. Jesus tinha acabado de expulsar um demônio, mas o povo, em vez de louvar a Deus, o acusou de agir com o poder de Belzebu. O nome Belzebu (do hebraico Ba‘al Zebûb, בַּעַל זְבוּב) quer dizer literalmente “senhor das moscas”, e nas antigas crenças pagãs era o nome de um falso deus adorado em Ecrom (2 Reis 1,2). Com o tempo, virou um apelido pra satanás, o chefe dos demônios. No pensamento judaico, as moscas simbolizavam sujeira e podridão, então Belzebu era o mestre da corrupção. Jesus respondeu mostrando o absurdo dessa acusação: “Todo reino dividido contra si mesmo será destruído.” Ele usa a imagem de “um homem forte, bem armado, que guarda seu palácio” (o diabo) que parece no controle. Mas Jesus se chama de “um mais forte” que vem, o vence e toma suas armas. A palavra grega pra “forte” é ischyros (ἰσχυρός), e pra “mais forte” é ischyroteros (ἰσχυρότερος). Essas palavras falam não de força física, mas de autoridade e domínio. O diabo tem poder, mas Jesus tem autoridade. Quando Jesus fala de expulsar demônios “pelo dedo de Deus”, Ele lembra Êxodo 8,19, quando os magos do faraó admitiram que os milagres de Moisés eram feitos “pelo dedo de Deus.” Em hebraico, essa expressão ’etsba Elohim (אֶצְבַּע אֱלֹהִים) significa intervenção divina, o menor gesto de Deus é mais forte que todo poder humano ou demoníaco.
Mas Jesus vai mais fundo. Ele diz que, quando um espírito impuro sai de uma pessoa e depois encontra a alma “varrida e arrumada”, mas vazia, ele volta com sete espíritos piores. A expressão “varrida e arrumada” em grego é kekosmēmenon (κεκοσμημένον), da palavra kosmeo, que quer dizer decorar ou organizar bonitinho. Quer dizer que a pessoa parece bem por fora, mas está vazia por dentro, como uma casa decorada, porém sem morador. É isso que acontece quando a Igreja ou o cristão se preocupa mais com aparência do que com presença. O mal adora um coração vazio. Quando a Igreja se torna mais interessada em cargos, títulos e aparência externa do que em viver cheia do Espírito, o diabo parece mais unido do que o corpo de Cristo. O “dedo de Deus” expulsa o mal, mas, se essa casa (nosso coração, nossas paróquias, nossas famílias) não for preenchida pelo Espírito Santo, o mal volta mais forte e mais decidido.
Então, qual é a lição pra nós? Quando o diabo parece organizado, muitas vezes é porque o povo de Deus está desorganizado na fé, dividido no amor e distraído na missão. O mal cresce nas brechas da nossa divisão. O dia em que começarmos a rezar e viver com um só coração, uma só visão e uma só voz, o diabo perde a coordenação. Joel pediu arrependimento, o Salmo pediu confiança, e Jesus mostrou que a vitória já está garantida se a gente permanecer cheio do Espírito. Temos que parar de polir casas vazias e começar a enchê-las com oração, misericórdia e unidade. A Igreja não é fraca; ela só parece fraca quando seus membros deixam de viver como corpo do “Mais Forte.” O mal pode até marchar em ordem por um tempo, mas o seu fim é o caos. O Reino de Deus é silencioso, paciente e poderoso. Ele não grita, mas permanece. E, quando o dia do Senhor chegar, toda estrutura organizada do mal vai cair diante do simples e suave “dedo de Deus.”
“Oxalá ouvísseis hoje a sua voz: não fecheis os vossos corações!” (Salmo 94,7)
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Shalom!
© Fr. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brazil
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