Por que o Amor sem Sofrimento é Incompleto
Primeira Leitura: Atos 14,21-27
Salmo Responsorial: Sl 144(145),8-13a
Segunda Leitura: Apocalipse 21,1-5a
Evangelho: João 13,31-33a.34-35
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Woody Allen, com sua costumeira ironia, disse certa vez: “Amar é sofrer. Para evitar o sofrimento, é preciso não amar.” Apesar do tom leve, há uma verdade profunda nessa frase: o amor verdadeiro exige vulnerabilidade. Søren Kierkegaard desenvolveu esse pensamento, especialmente sob uma ótica cristã, afirmando que o amor autêntico, o que a Sagrada Escritura chama de agapē, não pode existir sem sacrifício. Em outras palavras, o amor não se prova apenas com palavras ou sentimentos, mas sobretudo com aquilo que se está disposto a suportar pelo bem do outro. Essa realidade se manifesta no cotidiano, em incontáveis formas escondidas: como a mãe que perde o sono por causa do seu bebê, o amigo que permanece ao lado mesmo na doença ou na vergonha, o sacerdote que segue fiel ao serviço pastoral mesmo diante de dificuldades e desafios, ou o cristão que continua orando e servindo mesmo quando a presença de Deus parece ausente. Esses não são exemplos de amor apesar do sofrimento, mas de amor manifestado através do sofrimento. Essas situações revelam que o amor, longe de ser um mero sentimento, se torna mais autêntico e duradouro quando persevera em meio às dificuldades. Na vida real, o amor é provado não pelos momentos bonitos que desfrutamos, mas pelos difíceis que suportamos. Isso nos leva a uma pergunta urgente: o amor pode realmente ser chamado de amor se não nos custa nada? As leituras litúrgicas deste domingo nos ajudam a compreender que o amor autêntico carrega o peso do sofrimento. Desde as tribulações da Igreja primitiva, passando pelo mandamento de Jesus de amar como Ele amou, até a visão escatológica da nova criação em Deus, a Escritura nos mostra que o sofrimento não anula o amor; pelo contrário, o completa.
Na Primeira Leitura (Atos 14,21-27), Paulo e Barnabé voltam a Listra, Icônio e Antioquia — lugares onde já haviam pregado e inclusive sofrido perseguições (cf. At 14,19). Dizem às comunidades: “É preciso passar por muitas tribulações para entrar no Reino de Deus.” A palavra grega usada para “tribulações” é θλίψεις (thlipsis), que pode ser traduzida como “aflições” ou “pressões.” Esse termo aparece com frequência nos escritos paulinos para descrever as dificuldades que marcam o caminho cristão, como em Romanos 5,3 e de forma prática em 2Coríntios 4,17ss. O Sitz im Leben (contexto de vida) desta passagem é a realidade da Igreja nascente, enfrentando hostilidade tanto das autoridades judaicas quanto da sociedade pagã. No entanto, em meio a essa adversidade, o amor não foi abandonado; ele foi aprofundado. Paulo e Barnabé não fugiram do sofrimento; acolheram-no como parte essencial do discipulado e como forma de construir comunidades autênticas fundadas no amor. Assim, o thlipsis (sofrimento) não é o oposto do amor, mas o seu cadinho. É desnecessário dizer que seguir Cristo é amá-lo, e amá-lo é sofrer com Ele (cf. Fl 1,29). Os apóstolos não são meros administradores; são testemunhas que sangraram pelo Evangelho que pregam. O Evangelho de Cristo é inseparável da Cruz de Cristo (cf. 1Cor 2,2), e o amor que evita o sofrimento não pode ser considerado apostólico.
Em consonância, o Salmo Responsorial (Sl 145) apresenta um contraste lírico, mas em harmonia com essa mensagem. Ele proclama: “O Senhor é piedoso e compassivo, lento para a cólera e cheio de amor… Perto está o Senhor de todos os que o invocam.” Aqui, o contexto é de louvor litúrgico. No entanto, esse louvor não nasce de um otimismo ingênuo, mas da memória das provações de Israel e da fidelidade constante de Deus. O Salmo afirma que o amor divino não está alheio ao sofrimento humano, mas entra nele. A palavra “compassivo” traduz o hebraico רַחוּם (raḥūm), relacionado à raiz reḥem (útero), evocando um amor terno e materno, que sente a dor do outro como sua própria. Esse tipo de amor não é sentimentalista. Ele sofre com. Ele se solidariza. Ao ligar esse Salmo à primeira leitura, entendemos que a proximidade de Deus não elimina a tribulação, mas a preenche com sua presença. Portanto, aqueles que sofrem por amor, ou no amor, não caminham sozinhos. O Salmo 145 responde ao thlipsis não negando sua realidade, mas cercando-a com a certeza da companhia divina.
O clímax dessa mensagem é apresentado no Evangelho (João 13,31-35), que nos conduz ao coração do mistério pascal. O Sitz im Leben aqui é a Última Ceia, logo após Judas sair para trair Jesus. Nesse momento sombrio, Jesus declara: “Agora foi glorificado o Filho do Homem.” E logo em seguida vem a afirmação central: “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.” O que torna o mandamento “novo” não é o conteúdo (cf. Lv 19,18), mas o critério: como eu vos amei. O termo grego usado é ἀγαπάω (agapaō), na forma imperativa, que indica um amor que é doação, sacrifício, e não condicionado. Não se fundamenta na afeição ou preferência, mas na ação e na disposição de sofrer. Jesus não está falando de proximidade emocional, mas de um amor que lava os pés (Jo 13,5), que dá a vida pelos amigos (Jo 15,13) e que se estende até aos inimigos. No contexto da traição, Jesus oferece não retaliação, mas um amor que absorve a dor e a redime. Por isso, o amor que não sofre perde o formato da cruz. O escândalo aqui é que Jesus liga sua glorificação não ao triunfo, mas à entrega. A Igreja é chamada a refletir esse mesmo amor cruciforme, especialmente na vida comunitária. O discipulado, portanto, não consiste em estar certo ou confortável, mas em ser quebrado pelos outros. O amor que não suporta incompreensões, perseguições ou incômodos não é o amor que Jesus ordena.
Para apresentar a visão escatológica do destino do amor (agapē), a Segunda Leitura (Apocalipse 21,1-5a) nos mostra que o antigo mundo de lágrimas, dor e morte passará, e Deus habitará plenamente com o seu povo. “Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos.” O verbo grego aqui é ἐξαλείψει (exaleipsei), que significa apagar completamente, eliminar. A nova Jerusalém não é apenas uma imagem bonita, mas o resultado de um amor fiel vivido através do thlipsis (sofrimento). É importante perceber que a recompensa não vem por evitar o sofrimento, mas por amar através dele; por isso haverá um tempo em que Deus enxugará as lágrimas daqueles que passaram pela dor. O texto também afirma: “As coisas antigas passaram”, utilizando o grego ἀπῆλθον (apēlthon), que implica um afastamento definitivo. O mundo como o conhecemos — marcado por traições, injustiças e tristezas — já não existirá. No entanto, é o amor (amor custoso e fiel) que faz a ponte entre o sofrimento presente e a glória futura. Assim como Cristo foi glorificado no momento da traição, também a Igreja será glorificada quando seu amor tiver passado pelo crisol do fogo (cf. 1Pd 1,7).
Queridos irmãos e irmãs em Cristo, amar verdadeiramente é se tornar vulnerável, não porque o amor falha, mas porque ele se doa. Não se espante se amar o outro custar o seu conforto, a sua popularidade ou seus planos pessoais. Quando o amor fizer você chorar, lembre-se de que Deus recolhe cada uma dessas lágrimas (cf. Sl 56,8). Em sua família, paróquia ou missão, escolha permanecer no amor mesmo quando dói, pois é nesse momento que ele mais se assemelha ao de Cristo. Ame seu cônjuge mesmo quando a comunicação for difícil. Ame sua comunidade mesmo quando não houver reconhecimento. Ame seus inimigos mesmo quando o insultarem. Esse é o amor que reflete Jesus. E é esse amor que prepara você para os novos céus e a nova terra, onde todo sofrimento suportado no amor será transfigurado em alegria eterna. E, acima de tudo, lembre-se de que a promessa de Deus não é nos poupar da dor, mas habitar conosco através dela e transformá-la em alegria. Portanto, qualquer versão do cristianismo que separe o amor do sofrimento não é apenas incompleta, mas também infiel ao Evangelho.
Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)
Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
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