VOZ DO LOGOS: REFLEXÃO/HOMILIA PARA A TERÇA-FEIRA DA TERCEIRA SEMANA DA PÁSCOA – ANO ÍMPAR

Confundindo o Sinal com a Realidade que Ele Aponta

Primeira Leitura: Atos 7,51–8,1a
Salmo Responsorial: Salmo 30(31),3-4.6.8.17.21
Evangelho: João 6,30-35

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É comum na vida nos deixarmos absorver pelas aparências e pelos sinais exteriores, perdendo de vista o seu verdadeiro significado. Essa tendência, tão presente na natureza humana, já era observada na Antiguidade. Santo Agostinho advertia que um sinal não é um fim em si mesmo, mas um meio que “nos leva a pensar em algo que está além dele”. Ele alertava contra o apego aos sinais quando se esquece o que eles realmente significam. Mais tarde, Martin Heidegger explicaria que a verdadeira função de um sinal é revelar um caminho em direção ao Ser, e não encobri-lo. Quando os sinais são compreendidos corretamente, conduzem à verdade; quando são mal interpretados, acabam por encobri-la. Esse deslocamento de foco não é algo novo. Ele reflete uma luta recorrente na história da salvação, onde os sinais visíveis, criados para sustentar a fé, são convertidos em fins em si mesmos. É sob essa luz que o tema litúrgico de hoje nos convida a refletir sobre a tendência de confundir o sinal com a realidade a que ele aponta. Muitos são atraídos por objetos sagrados, eventos religiosos ou manifestações espirituais extraordinárias, esquecendo que tudo isso deve nos conduzir à comunhão com o Deus vivo. Quando o sinal é separado da realidade que ele significa, perde seu verdadeiro propósito. Esse tema ecoa em todas as leituras de hoje: o perigo de confundir sinais com substância, aparência com essência, intermediários com Aquele que se revela por meio deles. Esta reflexão não se trata de rejeitar símbolos ou sinais, mas de resgatar seu papel como janelas (e não muros) para o mistério divino.

Na primeira leitura (Atos 7,51–8,1a), Estêvão confronta os líderes religiosos com palavras incisivas. Seu discurso, que culmina em seu martírio, é uma crítica teológica contra um povo que venerava a Lei, o Templo e as tradições sagradas, mas falhava em reconhecer o Deus que lhes havia dado tais dons. O “Sitz im Leben” (contexto vital) dessa passagem se situa no conflito entre a comunidade cristã nascente e as autoridades judaicas tradicionais, que insistiam no culto do Templo e nas normas mosaicas. Estêvão os acusa de resistirem ao Espírito Santo e de seguirem o padrão de seus antepassados, que haviam matado os profetas. A veneração que tinham pelo Templo tornara-se vazia, pois não havia abertura ao Deus para o qual o Templo deveria apontar. Isso revela um aspecto central do tema: confundir o símbolo com a realidade. A raiz grega relacionada a essa confusão é sēmeion, que significa “sinal”. Um sinal não é o destino, mas um indicador que aponta para algo maior. No entanto, o povo havia transformado o sinal em ponto de chegada. Valorizavam a Lei, mas fechavam o coração ao seu cumprimento em Cristo. Respeitavam o Templo, mas rejeitavam o Deus que ali habitava.

O salmo responsorial (Salmo 30) continua esse fio temático ao deslocar o foco para um coração que não se apega a sinais exteriores, mas se entrega ao próprio Deus. “Em tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito” é a oração central de quem aprendeu a confiar na realidade que está além das aparências. O salmista, provavelmente Davi em contexto de aflição pessoal, exclama: “Em tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito.” Essa frase foi retomada por Jesus na cruz e também por Estêvão no momento de sua morte, conforme vimos na primeira leitura. Reflete uma entrega não aos sinais, mas Àquele que os sinais revelam. O salmista não pede sinais visíveis de vitória ou favores, mas ancora sua esperança na aliança com o próprio Deus. O movimento aqui é do símbolo à substância, da expressão litúrgica à entrega pessoal. Isso nos desafia a medir nossa fé não pela quantidade de objetos religiosos que possuímos ou pela frequência das nossas devoções externas, mas pela profundidade de nossa comunhão com Deus, especialmente nos momentos de provação e escuridão. O salmo educa o coração a enxergar além do véu dos sinais e repousar na Pessoa que eles apontam.

O evangelho (João 6,30-35) traz a exposição mais clara desse tema. A multidão exige um sinal de Jesus, comparando-o a Moisés que deu o maná no deserto. Querem pão novamente, um milagre repetido, algo tangível. Jesus redireciona esse desejo: “Não foi Moisés quem vos deu o pão do céu, mas é meu Pai quem vos dá o verdadeiro pão do céu.” As pessoas perguntam: “Que sinal realizas para que possamos ver e crer em ti?” Elas recordam o maná como prova da presença divina e exigem algo semelhante de Jesus. O contexto histórico está permeado pela expectativa judaica de que o Messias repetiria os milagres de Moisés, especialmente a oferta do pão do céu. No entanto, Jesus responde dizendo que o verdadeiro pão não é o maná do passado, mas o pão vivo do céu – Ele mesmo. A palavra grega sēmeion aparece novamente nesse capítulo, usada pela multidão ao pedir um sinal. Jesus critica essa mentalidade, revelando uma fome mais profunda, não apenas por pão físico, mas pela vida eterna. Sua resposta, “Eu sou o pão da vida”, desloca o foco do sinal para a substância. Ele se oferece como o alēthinos artos – o pão verdadeiro. O termo grego alēthinos implica algo genuíno, não apenas em aparência, mas em essência. Em outras palavras, Jesus afirma: vocês continuam pedindo sinais, quando a Realidade para a qual todos os sinais apontam está diante de vocês. Seus olhos permanecem fixos na multiplicação dos pães, mas não conseguem captar seu sentido mais profundo: a Eucaristia, o dom de Si mesmo. Eles querem o sinal do pão, mas Cristo os convida a uma união com Ele como o Pão da Vida. O maná sempre foi uma preparação para um sustento mais profundo, mas o povo não conseguiu ultrapassar a sombra e abraçar a realidade. A declaração de Jesus confronta uma fé baseada em expectativas exteriores e convida a uma fé enraizada na comunhão espiritual.

Dessa reflexão brotam várias lições importantes. Primeiro, é necessário examinar se nossa vida espiritual está enraizada numa verdadeira relação com Cristo ou em apego a sinais exteriores. A água benta, os sacramentais, as devoções e as imagens sagradas são profundamente valiosos, mas somente se nos conduzirem a uma fé mais profunda em Cristo. Quando se tornam fins em si mesmos, correm o risco de ser distrações, e não ajudas. Em segundo lugar, esse tema desafia a Igreja de hoje a purificar sua catequese, garantindo que os fiéis compreendam o verdadeiro propósito da liturgia, dos sacramentos e das devoções como caminhos para o encontro com o Senhor, e não como soluções mágicas ou expressões culturais vazias. Por fim, essa reflexão nos convida a buscar mais o Doador do que os dons. Quando nossas orações não são respondidas ou os sinais não aparecem, é precisamente nesses momentos que a fé amadurece. Como o salmista e Estêvão, aprendemos a entregar nosso espírito nas mãos de Deus, encontrando alegria não no que vemos, mas em Quem confiamos. Buscar Cristo em Si mesmo, e não apenas os Seus sinais, é o sinal de uma fé madura e autêntica.

Por fim, a vida cristã exige que recuperemos a capacidade de ver os sinais não como posses a serem agarradas, mas como convites a ir mais fundo. O martírio de Estêvão, a entrega do salmista e a auto-revelação de Cristo no Evangelho nos lembram que os sinais da nossa fé – sejam eles litúrgicos, bíblicos ou sacramentais – não são o destino final. Foram-nos dados como instrumentos para despertar o coração à doação de Deus. A sabedoria de Santo Agostinho permanece atual: amar o sinal sem amar a realidade que ele significa é parar no meio do caminho da fé. A percepção de Heidegger também nos desafia a perceber como os símbolos religiosos podem tanto abrir quanto fechar nosso acesso à presença divina. Em nosso tempo, quando o apego superficial às expressões religiosas muitas vezes substitui a conversão interior, somos chamados a despir o embrulho e acolher o presente. O objetivo não é apenas admirar o que aponta para Cristo, mas desejar o próprio Cristo. E esse desejo se realiza não na repetição de gestos exteriores, mas na entrega do espírito, onde sinal e substância se encontram num encontro vivo.

Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)


Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
📧 nozickcjoe@gmail.com / fadacjay@gmail.com


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Chinaka Justin Mbaeri

A staunch Roman Catholic and an Apologist of the Christian faith. More about him here.

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