Além dos Alimentos Perecíveis da “Cafarnaum” do Mundo Atual
Primeira Leitura: Atos 9,1-20
Salmo Responsorial: Sl 116(117)
Evangelho: João 6,52-59
________________________________________
A alimentação é uma das necessidades mais básicas da vida. Todo organismo vivo, desde o menor inseto até o ser humano mais complexo, requer nutrição para sobreviver, crescer e funcionar. Para os seres humanos, o alimento não apenas sustenta o corpo, mas também une comunidades, marca celebrações e reflete cultura e identidade. No entanto, além de seu papel físico, o alimento carrega significados simbólicos e espirituais, especialmente na tradição bíblica. No tempo de Jesus, essa realidade não era diferente. Na Palestina do primeiro século, a segurança alimentar era incerta para muitos. O pão diário era conquistado com dificuldade, e a fome era uma companheira familiar para os pobres. Cafarnaum, onde Jesus ensinou o profundo discurso sobre a Eucaristia no Evangelho de João, era uma cidade pesqueira na costa norte do Mar da Galileia, que prosperava com o comércio e a agricultura. Servia como um centro econômico e religioso, movimentado por mercadores, pescadores e mestres da Torá. As pessoas compreendiam profundamente o valor do alimento, especialmente do pão e do peixe, seus alimentos básicos. O próprio nome Cafarnaum (hebraico: כְּפַר נַחוּם, Kefar Naḥum), que significa “aldeia de Naum” ou possivelmente “aldeia da consolação”, oferece um pano de fundo irônico para o drama da fome espiritual. Embora tenha sido um lugar onde Jesus ensinou e realizou muitos milagres, incluindo a alimentação de multidões e a cura de enfermos, seu povo frequentemente perdia o significado mais profundo por trás de suas ações. Eles buscavam o pão perecível, mas resistiam ao chamado para uma fé mais profunda e uma nutrição duradoura; e isso nos leva a refletir sobre o tema: “Além dos Alimentos Perecíveis da Cafarnaum do Mundo Atual”.
À luz dessa fome por mais do que pão, a primeira leitura de hoje (Atos 9,1-20) nos apresenta Saulo, um homem consumido não pela fome física, mas pelo zelo ideológico. Seu apetite era pela destruição da nascente comunidade cristã. O “Sitz im Leben” (contexto de vida) desta passagem reflete um período turbulento pós-Ressurreição, quando a Igreja primitiva enfrentava severa perseguição. A missão de Saulo a Damasco fazia parte de um esforço para extinguir o que muitos consideravam uma seita herética. No entanto, no exato momento de sua cegueira e queda, ocorre uma inversão radical. O perseguidor torna-se penitente e, ao ser batizado, Saulo entra em comunhão com o próprio Corpo que antes tentava destruir. Após sua conversão, somos informados de que por três dias ele esteve sem visão e não comeu nem bebeu. Aqui, ele buscava distanciar-se do alimento perecível em antecipação ao alimento real, que é a Sagrada Eucaristia. É desnecessário dizer que a implicação eucarística desta passagem é inevitável no sentido de que, quando Ananias impôs as mãos sobre Saulo, ele foi consequentemente batizado. Aqui, o Batismo torna-se não apenas um rito de iniciação, mas uma porta de entrada para a Mesa do Senhor. O termo grego para nutrição, trophē (τροφή), que significa alimento ou sustento, torna-se relevante aqui. A conversão de Saulo marca uma mudança da busca por poder e violência para um anseio por verdadeiro sustento espiritual. Aquele que anteriormente devorava outros com ódio agora está preparado para receber o Pão da Vida. Sua fome mudou de ambição destrutiva para comunhão redentora, sinalizando o tipo de fome que transcende o perecível.
No contexto de nossa reflexão, o salmo responsorial atua como um convite litúrgico ao banquete do Senhor para o sustento espiritual. Na liturgia do Templo, talvez nas grandes festas de peregrinação, gentios e judeus uniriam suas vozes na antiga palavra hebraica “hallel” (louvor), dando graças e recebendo a misericórdia de Deus. Este salmo insiste que o sustento divino não é racionado de acordo com pedigree ou currículo moral; é uma fonte de graça derramada para todos – “Louvai o Senhor, todas as nações, aclamai-o, todos os povos…”. O refrão do salmista, “Sua fidelidade é eterna”, nos lembra que o verdadeiro sustento não vem do que ganhamos, mas da promessa de aliança oferecida gratuitamente a cada alma. Em nossas próprias “Cafarnauns”, sejam nossos bairros ou nossas comunidades de fé, este banquete universal nos desafia a estender os braços em acolhimento em vez de agarrar as migalhas da exclusividade.
E, finalmente, na leitura do evangelho (João 6,52-59), o cenário nos retorna explicitamente a Cafarnaum, onde Jesus confronta as murmurações daqueles que não conseguem compreender o escândalo de seu ensinamento: “Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós”. O Sitz im Leben aqui é o discurso pós-alimentação na sinagoga de Cafarnaum, onde as expectativas de libertação política encontraram o convite direto à intimidade radical. As palavras gregas usadas são precisas e chocantes. Phagēte (φάγητε) é o aoristo subjuntivo de esthiō (ἐσθίω), significando “comer”, mas mais adiante, Jesus intensifica a linguagem usando trōgō (τρώγω), que significa “mastigar” ou “roer”, sugerindo uma alimentação concreta e física de sua carne. Isso explica por que a palavra usada para “carne” é “sarx” (σάρξ), e para “sangue”, haima (αἷμα), que não permitem uma interpretação puramente simbólica. Jesus insiste que sua sarx e haima são alimento verdadeiro (alēthēs brōsis) e bebida verdadeira (alēthēs posis), usando o termo alēthēs (ἀληθής), que significa verdadeiro ou genuíno. Portanto, nas palavras de Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele… não como o pão que os vossos pais comeram: eles morreram, mas quem come este pão viverá para sempre.” Isso não é um gesto metafórico. Ele está contrastando seu dom com os pães perecíveis que a multidão havia consumido. Enquanto os judeus ansiavam por um messias que multiplicasse o pão, Jesus oferece a si mesmo como o alimento imperecível. A controvérsia desse discurso dispersaria muitos de seus discípulos, mas permanece central em nossa fé eucarística.
Hoje, a “Cafarnaum” do nosso mundo continua obcecada pelo consumo. Supermercados transbordam, plataformas digitais estão inundadas de conteúdo sobre comida – iFood, UberEats, etc., e ainda assim a fome espiritual cresce. Os alimentos perecíveis das Cafarnauns modernas, seja na forma de gratificação instantânea, conforto material ou religiosidade superficial, não podem satisfazer o anseio plantado em cada coração. O chamado de Cristo ainda ecoa: “Trabalhai, não pelo alimento que perece, mas pelo alimento que permanece para a vida eterna” (João 6,27). Em cada Eucaristia, o Pão da Vida é oferecido, não apenas para nutrir o corpo, mas para renovar a alma. Assim, as leituras nos convidam a cultivar um apetite interior pelo que perdura. Em um mundo afogado em gratificação instantânea, lanches, redes sociais, tendências de autoajuda, facilmente confundimos conforto passageiro com nutrição duradoura. O dom que chamamos Eucaristia nos lembra que o verdadeiro pão faz mais do que saciar; ele transforma. Que possamos deixar cada mesa ainda com fome por mais de Cristo, confiantes de que nossos anseios mais profundos encontram descanso apenas naquele que nos alimenta com sua própria vida.
Finalmente, o discurso em Cafarnaum desafia nossa fé eucarística. Jesus não suaviza suas palavras, e nós também não devemos diluir a exigência radical do sacramento. Receber sua carne e sangue não é apenas um ritual, mas uma participação plena em sua vida, morte e ressurreição. Comer este Pão é aceitar o risco de se tornar quebrado pelos outros, derramado em amor e incompreendido pelo mundo. Em um tempo em que muitos se aproximam do altar com reflexão mínima, somos chamados a uma compreensão mais profunda e uma recepção mais consciente da Presença Real. O erro de Cafarnaum não deve ser o nosso: preferir os pães e perder o Senhor.
Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)
Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
📧 nozickcjoe@gmail.com / fadacjay@gmail.com
Você já rezou o seu terço hoje?