Deus desrespeitou o livre-arbítrio de Jonas ou Jonas usou mal a própria liberdade?
Primeira Leitura: Jonas 1,1–2,1.11
Salmo Responsorial: Jonas 2,3-5.8
Evangelho: Lucas 10,25-37
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A Igreja sempre ensina que Deus respeita o nosso livre-arbítrio. Desde o início, Ele nos criou não como robôs, mas como pessoas capazes de escolher. Deus nunca força ninguém a servi-Lo. Adão e Eva foram livres para obedecer ou desobedecer, Abraão foi livre para sair da sua terra ou ficar, e Maria foi livre para dizer “sim” ou “não” ao anjo. Até Jesus respeitou a liberdade humana: Ele não implorou para Judas ficar, nem impediu o jovem rico de ir embora. Sempre entendemos isso como sinal do respeito divino: o amor de Deus convida, mas nunca obriga. No entanto, quando reli a história de Jonas, algo me chamou atenção. Parecia que Deus não aceitava o “não” de Jonas. Jonas disse que não iria para Nínive, mas tudo aconteceu como se a vida o empurrasse de volta para a vontade de Deus: veio a tempestade, os marinheiros e até um grande peixe. Tudo parecia arrumado para fazê-lo fazer o que ele não queria. Aí me perguntei: será que Deus, nessa história, anulou o livre-arbítrio de Jonas? Será que Ele o forçou a obedecer? Ou havia algo mais profundo acontecendo, algo sobre a diferença entre liberdade e rebeldia? Essas são as perguntas que as leituras de hoje nos fazem pensar.
A primeira leitura do Livro de Jonas nos coloca bem dentro dessa tensão. Jonas não era um homem mau; ele era um profeta já chamado por Deus. Historicamente, o livro foi escrito por volta do século V antes de Cristo, depois do exílio, quando Israel estava aprendendo novamente que a misericórdia de Deus é maior que o orgulho nacional. A história de Jonas foi contada quase como uma parábola, para mostrar que a compaixão de Deus é para todos, até mesmo para os inimigos de Israel. Quando Deus pediu para Jonas ir a Nínive (capital da Assíria), Ele o estava enviando ao povo que tinha oprimido sua própria nação. A recusa de Jonas não foi preguiça, foi ressentimento. Ele não queria que Deus mostrasse misericórdia aos seus inimigos. Por isso, quando pegou o navio para Társis, ele não estava apenas mudando de lugar, mas resistindo à misericórdia divina. O texto diz que Jonas fugiu “da presença do Senhor”. O verbo hebraico usado aqui é “בָּרַח” (barach), que quer dizer “fugir, escapar”. Mas, na mentalidade judaica, ninguém pode realmente fugir da presença de Deus (cf. Salmo 139,7–10). A fuga de Jonas, portanto, não foi geográfica, mas espiritual. Ele estava usando a liberdade, mas contra a graça. Então veio a tempestade — não para cancelar a vontade dele, mas para despertá-la. Deus não tirou a liberdade de Jonas; Ele usou a própria criação para confrontá-lo com a realidade da sua escolha. Dentro do peixe, Jonas rezou. Ele livremente voltou-se novamente para Aquele de quem havia fugido. O peixe, então, não foi uma prisão, mas uma misericórdia. A história mostra que quando a nossa liberdade foge de Deus, o amor d’Ele corre mais rápido, não para nos forçar, mas para nos resgatar.
O salmo responsorial, tirado da oração de Jonas dentro da barriga do peixe, se torna um espelho de arrependimento. “Na minha angústia invoquei o Senhor, e Ele me respondeu.” A palavra hebraica para “angústia” é “צָרָה” (tsarah), que significa um lugar apertado, estreito, sufocante. Jonas, preso na escuridão, descobriu que a sua liberdade sem Deus tinha virado tsarah — uma prisão feita por ele mesmo. Às vezes chamamos nossos pecados de “escolhas”, mas logo eles viram as correntes que nos prendem. A oração de Jonas mostra que mesmo quando usamos mal a liberdade, a misericórdia de Deus pode nos encontrar no fundo do poço. Ele diz: “Tu me lançaste no fundo, no coração dos mares”, mas esse “fundo” se tornou o ventre de um novo nascimento. O que parecia castigo, na verdade, foi proteção. O salmo mostra que Deus respeita a nossa liberdade, mas nos envolve com a Sua misericórdia até lembrarmos que a verdadeira liberdade só existe quando nos entregamos a Ele.
No Evangelho, a parábola do Bom Samaritano coloca essa lição em prática. Aqui aparece outro homem usando a liberdade: um doutor da Lei que quer testar Jesus e pergunta: “Quem é o meu próximo?” Jesus responde com uma história que desmonta as desculpas humanas. O sacerdote e o levita tinham liberdade para ajudar o homem ferido, mas escolheram passar direto. A liberdade deles virou escudo para a indiferença. O samaritano, ao contrário, escolheu livremente a compaixão. Num mundo onde judeus e samaritanos se odiavam, o gesto dele quebrou as barreiras de cultura e preconceito. O Evangelho de Lucas, escrito por volta do ano 80 d.C., sempre mostra que a misericórdia de Deus não tem limites. A palavra grega usada para “compaixão” é “σπλαγχνίζομαι” (splagchnizomai), que quer dizer “ser tocado nas entranhas”, no mais profundo do coração. É um movimento interior de misericórdia. A compaixão do samaritano mostra que a liberdade encontra seu sentido mais alto quando reflete o coração de Deus. Jonas usou sua liberdade para fugir do sofrimento de Nínive; o samaritano usou a liberdade para se aproximar do sofrimento do outro. A diferença é que um confundiu liberdade com independência, e o outro viveu a liberdade como amor.
No fim, a pergunta continua: Deus desrespeitou o livre-arbítrio de Jonas? A resposta é não. Jonas é que desrespeitou o sentido da própria liberdade. Deus nunca o forçou; Ele apenas o amou demais para deixá-lo perdido. Cada tempestade na nossa vida, cada crise que nos faz cair de joelhos, pode ser o jeito de Deus nos dar uma segunda chance de dizer “sim”. A história de Jonas mostra que a graça divina não cancela a vontade humana; ela a redime. O salmo lembra que a misericórdia de Deus pode alcançar até quem está preso nas próprias escolhas. O Evangelho ensina que a verdadeira liberdade não é dizer “não” a Deus, mas escolher amar onde outros passam longe. Então talvez a pergunta de hoje não seja se Deus respeita a nossa liberdade, mas se nós a respeitamos o bastante para usá-la para o que ela foi criada: amar, servir e obedecer Àquele que é o único que realmente nos liberta.
Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)
Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
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