Pode Deus Rejeitar o Seu Próprio Povo da Aliança?
Primeira Leitura: Gênesis 17,3-9
Salmo Responsorial: Sl 104(105),4-9
Evangelho: João 8,51-59
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Poucas coisas são tão dolorosas nos relacionamentos humanos quanto a traição de alguém em quem se confia profundamente. Seja no matrimônio, na amizade ou na família, quanto mais estreito o vínculo, mais profunda é a ferida quando esse vínculo se rompe. Imagine um pai que deu tudo aos seus filhos, apenas para ser rejeitado quando eles se tornam adultos. Ele os vestiu, alimentou, fez sacrifícios pelo futuro deles e, ainda assim, agora negam tê-lo conhecido ou, pior, alegam que sua generosidade nunca foi suficiente. Essa cena, embora pessoal e comum, reflete algo mais profundo: o mistério da rejeição divina. Pode um Deus que faz uma promessa eterna a um povo algum dia renegar esse povo? É possível que Deus se afaste daqueles a quem um dia chamou de Seus? Esta não é apenas uma questão teológica, mas de identidade, fidelidade e do verdadeiro sentido de pertencer.
Na primeira leitura, Gênesis 17,3–9, encontramos um momento decisivo na história da salvação. Abrão já caminhava com Deus, e agora Deus renova e aprofunda a Sua aliança com ele. O Sitz im Leben (contexto vital) deste texto é a formação narrativa da identidade de Israel. Marca a transição de uma relação privada para uma aliança pública e geracional. Deus muda o nome de Abrão para Abraão, prometendo que ele se tornará pai de uma multidão de nações. A palavra “aliança” aqui vem do hebraico berît, que significa uma aliança vinculativa e duradoura, que traz tanto privilégios quanto obrigações. Deus promete permanência: “Serei o teu Deus e o Deus dos teus descendentes.” Este é um vínculo sagrado, destinado a durar “para sempre.” Mas embutida nesta promessa há também uma condição: Abraão e seus descendentes devem guardar a aliança. Essa condição abre a possibilidade de ruptura. Se a aliança não é apenas uma declaração unilateral, mas um acordo bilateral, a infidelidade de uma das partes pode invalidá-la?
O Salmo Responsorial (105) responde a este drama da aliança entoando a fidelidade de Deus. Convida o povo a recordar as maravilhas de Deus e Sua promessa a Abraão. O salmo reconhece que Deus guarda Sua aliança “para sempre,” mostrando que Deus é constante na Sua parte do relacionamento. No entanto, essa recordação não é nostalgia passiva; é um chamado ativo à fidelidade. O Sitz im Leben deste salmo é provavelmente o culto pós-exílico, onde o povo, após vivenciar o exílio por causa da infidelidade, reflete sobre a constância de Deus apesar do seu fracasso. Este pano de fundo levanta uma pergunta desconfortável: se o povo foi exilado, Deus os abandonou ou permitiu que as consequências da rejeição deles viessem à tona? O salmo louva a fidelidade de Deus, mas apenas aqueles que recordam e guardam a aliança podem de fato alegrar-se com essa fidelidade. Memória sem obediência é sentimentalismo, não fidelidade à aliança.
Na leitura do Evangelho, João 8,51–59, o diálogo entre Jesus e os judeus se torna cada vez mais tenso. Jesus afirma que aqueles que guardam a Sua palavra jamais verão a morte. Seus ouvintes, orgulhosos de serem descendentes de Abraão, ficam escandalizados. Como pode este homem afirmar ser superior a Abraão, que morreu? O verdadeiro escândalo acontece quando Jesus usa o nome divino “EU SOU” (egō eimi em grego), a fórmula sagrada de Êxodo 3,14, identificando-Se com YHWH. O Sitz im Leben desta passagem é o crescente conflito entre Jesus e as autoridades religiosas, culminando com a intenção delas de apedrejá-Lo. A palavra-chave aqui é apodokimazō (ἀποδοκιμάζω), que significa rejeitar ou reprovar, usada em outros textos do Novo Testamento para descrever a rejeição de Jesus pelos construtores (cf. Lc 20,17). Jesus mostra que mesmo aqueles que afirmam herança abraâmica podem rejeitar o próprio Deus que chamou Abraão. É possível pertencer externamente à aliança e, na prática, opor-se ao Deus da aliança. Assim, ser filho de Abraão não se trata de linhagem, mas de escutar e obedecer Aquele que Deus enviou. Jesus, o Verbo encarnado, é o critério de fidelidade à aliança. Rejeitá-Lo é rejeitar a aliança.
Uma das grandes lições disso é que a identidade religiosa não é garantia de aprovação divina. Pertencer à Igreja, mesmo ser batizado e crismado, não é escudo contra o julgamento se a própria vida contradiz a Palavra de Deus. A aliança exige fidelidade. Se Abraão tivesse deixado de caminhar em obediência, a aliança teria sido rompida da parte dele. Da mesma forma, os católicos hoje não devem presumir que o status sacramental seja suficiente. A graça é oferecida, não imposta. A fidelidade de Deus não anula a responsabilidade humana. A nossa participação na aliança não é simbólica; é real, prática e moral. A questão não é se Deus é fiel, mas se nós somos.
Em segundo lugar, o Evangelho revela uma verdade sóbria: Deus pode estar no meio do Seu povo, e este pode não reconhecê-Lo. Os judeus de João 8 eram profundamente religiosos. Conheciam as Escrituras. Recitavam os salmos. Mas não suportaram Jesus. Esse é um perigo real para a Igreja. As práticas quaresmais, devoções e rotinas religiosas podem coexistir com um coração fechado a Cristo. Podemos defender a Igreja e rejeitar os pobres. Podemos proteger a doutrina e ignorar a misericórdia. Quando a religião se torna um escudo contra o encontro com o Deus vivo, começamos a trilhar o caminho da ruptura da aliança.
Em terceiro lugar, a Quaresma é um tempo privilegiado para examinar não apenas nossa vida moral, mas nossa identidade de aliança. Estamos caminhando com Deus ou apenas vivendo de uma graça herdada? Guardamos a Palavra ou preferimos discutir com ela? O Deus de Abraão continua sendo o Deus da aliança, mas Sua aliança agora se encarnou em Cristo. Rejeitar Cristo não é uma simples discordância; é separar-se da fonte da vida. Isso não é apenas uma questão inter-religiosa. Dentro da própria Igreja, muitos carregam o nome de Cristo, mas vivem numa postura de rejeição. O apelo das leituras de hoje é claro: não presuma da aliança. Renove-a. Guarde-a. Viva-a. Ou corra o risco de ser excluído de uma história que você foi chamado a herdar.
No fim, a resposta à pergunta é séria: sim, Deus pode rejeitar aqueles que um dia fizeram parte da Sua aliança se romperem com Ele pela infidelidade. O amor de Deus é constante, mas não coercitivo. A aliança é um diálogo, não um decreto. Para permanecer nela, é preciso permanecer em Cristo.
Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)
Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
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