VOZ DO LOGOS (23): REFLEXÃO/HOMILIA PARA SEXTA-FEIRA DA PRIMEIRA SEMANA DA QUARESMA, ANO 1

A Oração de Última Hora Pode Absolver Uma Vida Inteira de Pecado?

Primeira Leitura: Ezequiel 18,21-28
Salmo Responsorial: Salmo 129(130)
Evangelho: Mateus 5,20-26
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É uma cena comum em filmes e execuções na vida real: alguém prestes a enfrentar a morte é instruído a dizer suas últimas orações. Assaltantes armados, antes de puxar o gatilho, às vezes zombam de suas vítimas dizendo: “Diga suas últimas orações.” Prisioneiros no corredor da morte, momentos antes de serem fuzilados ou enforcados, recebem a chance de fazer uma última súplica a Deus. Quando um avião está prestes a cair, passageiros gritam, choram e, apressadamente, dizem qualquer palavra que acreditem poder lhes garantir a misericórdia divina. Mas será que uma última oração realmente apaga uma vida inteira de pecado? Essas orações de última hora têm o mesmo peso que a devoção de alguém que passou a vida inteira em fidelidade a Deus? Pode uma pessoa que rejeitou Deus a vida toda sussurrar um ato de contrição sincero e receber a mesma recompensa de uma alma fiel que suportou sofrimentos e sacrifícios em obediência a Deus? Essas perguntas nos inquietam porque desafiam nosso senso moral de justiça e equidade. Alguém que viveu deliberadamente no pecado e só se volta para Deus por medo no último suspiro deveria receber a mesma misericórdia que uma pessoa que lutou para viver na retidão? As leituras do dia nos forçam a refletir sobre essas realidades desconfortáveis.

A primeira leitura de Ezequiel 18,21-28 aborda essa controvérsia diretamente. Deus declara que, se um ímpio se afasta de seus pecados e pratica o que é correto, ele viverá e não morrerá. Mas, se um justo abandona sua retidão e se entrega à maldade, morrerá em seu pecado. Essa passagem elimina a ideia de mérito acumulado – a bondade passada não garante a salvação se a pessoa morre no pecado, assim como a maldade passada não condena necessariamente alguém se houver um arrependimento genuíno. O termo hebraico “shuv” (שׁוּב), que significa “virar” ou “retornar”, está no coração dessa passagem e é a essência da mensagem quaresmal (retornar a Deus). Ele transmite uma mudança radical, uma conversão completa, e não apenas um reconhecimento verbal do erro. O sitz im leben (contexto histórico) da mensagem de Ezequiel foi o exílio de Israel, um período de julgamento no qual muitos acreditavam estar sofrendo pelos pecados de seus antepassados. No entanto, Deus enfatiza a responsabilidade pessoal – cada indivíduo é julgado por suas próprias ações, e não por sua história. Isso se aplica diretamente à questão do arrependimento de última hora. Se um pecador verdadeiramente retorna a Deus com um coração sincero, não importa o quão tarde, Deus o perdoará. Mas a sinceridade desse retorno é essencial – não pode ser apenas um grito desesperado motivado pelo medo da morte.

O Salmo 130, o salmo responsorial, aprofunda esse mistério: “Se levardes em conta as nossas faltas, Senhor, quem poderá subsistir? Mas em vós está o perdão, para que vos sirvam com reverência.” Esse trecho reconhece a realidade humana: ninguém é realmente digno diante de Deus. Ele muda o foco da justiça para a misericórdia – se Deus julgasse com rigor absoluto, ninguém seria salvo. No entanto, o Salmo não sugere uma graça barata; ao contrário, ele chama ao temor reverente ao Senhor, reconhecendo que o perdão é concedido não como um artifício, mas como um dom que deve inspirar devoção e mudança de coração. Ele declara que a misericórdia de Deus está disponível, mas deve ser recebida com admiração e humildade. Ainda assim, a pergunta persiste: a misericórdia de Deus tem um limite de tempo? O arrependimento pode ser válido mesmo quando motivado pelo medo da morte, e não pelo amor genuíno a Deus?

A leitura do Evangelho em Mateus 5,20-26 intensifica essa discussão. Jesus eleva o padrão da justiça, advertindo que a virtude de alguém deve superar a dos escribas e fariseus para entrar no Reino dos Céus. Ele então fala sobre reconciliação, alertando que, se alguém não resolver seus conflitos e buscar a paz, enfrentará o julgamento. O sitz im leben dessa passagem é o ensinamento de Jesus sobre o significado mais profundo da Lei. Os líderes religiosos de sua época focavam na observância externa, mas Jesus desloca a atenção para a disposição interior do coração. O termo grego metanoia (μετάνοια), que significa “arrependimento” ou “mudança de mentalidade”, é central para esse ensinamento. A verdadeira conversão não é apenas fazer as pazes antes da morte ou dizer uma oração de última hora; trata-se de uma mudança interna que começa no momento em que alguém se volta para Deus. Metanoia implica uma conversão contínua, e não apenas uma súplica desesperada no último momento. Uma oração de última hora pode ser válida se for acompanhada de uma verdadeira metanoia, mas, sem um coração transformado, corre o risco de ser apenas palavras vazias. O ladrão arrependido ao lado de Cristo na crucificação (Lc 23:40-41) serve como exemplo de uma verdadeira metanoia – uma mudança genuína de coração – e não apenas um pedido de misericórdia de última hora. Diferente de um clamor nascido apenas do medo, seu arrependimento foi marcado por uma profunda autoconsciência e reconhecimento da justiça. Ele repreendeu o outro ladrão por zombar de Cristo, reconheceu que sua punição era justa, admitiu humildemente sua culpa e, movido pela fé, voltou-se para Jesus em um pedido de misericórdia. Sua conversão não foi apenas uma tentativa de escapar do julgamento, mas uma entrega confiante a Cristo em humildade.

Três lições fundamentais emergem dessas leituras:

Primeiro, a misericórdia de Deus é radical, mas não é mecânica. O arrependimento de última hora é possível, mas deve ser autêntico. Ninguém pode manipular Deus assumindo que uma oração rápida antes da morte garante a salvação. As leituras deixam claro que Deus vê o coração – Ele sabe quando o arrependimento é real e quando é meramente motivado pelo medo das consequências. O conceito hebraico de “shuv” nos lembra que o arrependimento trata de um retorno completo a Deus, e não apenas de palavras ditas em desespero. A ideia de que alguém pode viver no pecado durante toda a sua vida e se arrepender casualmente no último momento é uma presunção perigosa. O verdadeiro arrependimento requer um movimento do coração, não apenas o medo do julgamento iminente. Este é o perigo de tratar a misericórdia de Deus como um seguro de vida em vez de um chamado à conversão genuína. A mensagem de Ezequiel esclarece que o que importa é o estado da alma no momento do julgamento, mas isso não é um convite para adiar o arrependimento. Pelo contrário, é um desafio para viver em um estado de prontidão, sempre preparado para comparecer diante de Deus.

Segundo, a justiça é uma jornada ao longo da vida, e não uma conquista estática. Ser justo não significa simplesmente acumular boas obras, mas manter um relacionamento contínuo com Deus. Uma pessoa justa que se desvia para o pecado perde a graça que possuía, assim como um pecador que se converte recebe nova vida. Isso é preocupante porque contradiz a noção humana de justiça e equidade, mas enfatiza a responsabilidade pessoal. Deus não contabiliza feitos passados como um livro de contabilidade; Ele olha para o estado do coração no momento presente. Isso significa que a salvação nunca é “merecida” por uma vida inteira de boas obras – ela é sempre uma questão de graça. O desafio não é confiar em um único momento de arrependimento, mas cultivar um coração que permaneça aberto a Deus ao longo da vida.

Por fim, a resposta de Deus ao arrependimento de última hora não se baseia na justiça humana, mas na generosidade divina. O salmo nos lembra que, se Deus fosse estritamente justo em um sentido humano, ninguém seria salvo. Sua misericórdia não é concedida com base em cálculos humanos, mas sim em Seu amor infinito. No entanto, isso não nos dá licença para adiar o arrependimento. O chamado de Jesus à reconciliação e à metanoia nos exorta a viver em um estado de conversão constante, em vez de apostar tudo em um último momento de graça. Não basta fazer uma oração de última hora enquanto ainda se guarda rancor ou se mantém conflitos não resolvidos. O ensinamento de Jesus deixa claro: estar bem com Deus exige estar bem com os outros. O chamado para resolver disputas antes de oferecer adoração demonstra que o arrependimento é relacional – ele cura não apenas a alma, mas também as rupturas nos relacionamentos humanos. Uma conversão de última hora pode salvar uma alma pela misericórdia de Deus, mas ela priva a pessoa da riqueza de uma vida passada caminhando com Deus, crescendo em santidade e transformando o mundo através do amor. É muito melhor viver cada dia em um espírito de metanoia do que arriscar a eternidade em um último suspiro.

Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)


Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
📧 nozickcjoe@gmail.com / fadacjay@gmail.com


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Chinaka Justin Mbaeri

A staunch Roman Catholic and an Apologist of the Christian faith. More about him here.

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